quinta-feira, 21 de maio de 2009

Livre é quem se compromete

Texto de Marcelo Barros em 05/07/2004

Quem quiser participar de um gesto profético indicando que o mundo pode viver em paz a partir de formas alternativas de convivência fraterna está convidado a vir ao Mosteiro da Anunciação do Senhor em Goiás, neste domingo 11, para testemunhar o compromisso público que os irmãos Fernando e José Maria assumirão de viver como monges por toda a sua vida.

O fato de que estão chegando a Goiás para participar deste ato, alguns casais da Itália, amigos dos Estados Unidos, um abade da França e outro de Roma, além de brasileiros de vários estados, revela que este gesto que, aparentemente, diz respeito apenas à comunidade religiosa do Mosteiro de Goiás, na realidade, interessa ao mundo todo e tem um significado que vai além da dimensão unicamente religiosa.

De fato, no mundo todo, mesmo nas sociedades mais mundanas e indiferentes à religião, renova-se uma espécie de curiosidade e interesse pelos Mosteiros. Em recente encontro de monges, constatou-se que, nos últimos cinco anos, o número anual de hóspedes e pessoas que querem conhecer o ambiente monástico triplicou na maioria dos mosteiros. Esta curiosidade do mundo para com a vida dos monges não é apenas interesse pelo folclore medieval dos hábitos longos, por eventuais mistérios, ocultos atrás dos muros da clausura, nem mesmo só pela mística que deveria reinar nas casas religiosas. Mesmo que não tenham consciência disso, muitas pessoas, religiosas ou não, se sentem cada vez mais divididas interiormente e fragmentadas pela sociedade de consumo. Ora, de acordo com o sentido etimológico do termo, monge é quem busca a unidade interior e Mosteiro deve ser a oficina da unificação espiritual para se trabalhar a unidade com os outros. Então, é compreensível que tanta gente se sinta tocada ao saber que, nestes dias, em Goiás, dois monges farão sua profissão definitiva.

O significado mais humano e universal da cerimônia que ocorrerá no Mosteiro de Goiás pode-se explicar pelo fato de que os monges de Goiás, além de prometerem a Deus cumprir o encargo de monges, se comprometem também publicamente a consagrar suas vidas ao trabalho pela Paz do mundo, dedicando-se especialmente ao diálogo entre as diversas religiões e, mais particularmente à unidade entre as Igrejas cristãs, visando em tudo isso um serviço à Justiça, Paz e Defesa da natureza.

Na linha dos filósofos do Personalismo, Dom Hélder Câmara gostava de dizer que “só quem é verdadeiramente livre é capaz de consagrar-se”. De fato, diante do peso de um compromisso e da incerteza do amanhã, muitas pessoas têm medo de comprometer-se. Mesmo namorando um compromisso que julgam belo e importante, acabam sempre adiando qualquer decisão. Atualmente, mesmo pessoas que se amam preferem a relação sem compromissos. Quando casam, prometem ficar juntos, até que seja bom...

De fato, muitas vezes, as pessoas confundem aliança de vida e contrato. Este é jurídico, formal e válido para o comércio e o trabalho profissional. A aliança é algo muito mais profunda do que um mero contrato. Não amarra nem prende. Engaja o coração. Parte do amor. Por isso, é livre e libertadora. Baseia-se no mais profundo respeito a cada um. Como definia alguém, a aliança fraterna “reúne pessoas que se consagram a realizar juntas coisas belas e difíceis”. Infelizmente, às vezes, os religiosos dão ao mundo a impressão de que estão mais ligados por um contrato do que por uma aliança. No Mosteiro de Goiás, o respeito à liberdade de cada um e o fato de não vivermos em função da instituição, seja ela qual for, ressalta que o importante é a aliança e esta é profecia para o mundo todo.

De acordo com o Direito vigente na Igreja Católica, a quase totalidade dos religiosos faz votos de pobreza, obediência e castidade. Nos mosteiros beneditinos, como prevê a Regra de São Bento, os monges continuam prometendo “estabilidade, conversão de costumes e obediência”.
Quem conhece a vida peregrina minha e de tantos monges não pode interpretar a estabilidade como prisão a um único lugar nem a obediência como mera submissão militar a um superior hierárquico. Nem a conversão de costumes exige que alguém se despoje de sua cultura humana. Em Goiás e em outros mosteiros do mundo, compreendemos a estabilidade como compromisso de viver comunitariamente. Interpretamos a “conversão de costumes” como o propósito de buscar permanentemente a conversão pessoal em comunidade. Este voto é vivido pelas pessoas que se comprometem a nunca se acomodar. A obediência mais profunda e espiritual é a atitude de buscar sempre a Palavra de Deus no diálogo com os outros e na disponibilidade de escutar os irmãos e especialmente o monge escolhido para coordenar a comunidade.

Para quem é cristão, a consagração é o batismo e nenhuma outra consagração a supera ou substitui. Os votos religiosos são apenas uma forma de renovar o batismo. Mas, esta renovação pode ser feita de diversas formas e a profissão religiosa privilegia o caráter de relação matrimonial que o batismo tem. Pelo batismo, assumimos o fato de sermos filhos e filhas de Deus. A profissão monástica revela que temos com ele uma relação de intimidade e fidelidade como a da esposa para com o seu marido.

A cerimônia da profissão feita pelos monges tem duas dimensões: a primeira é o compromisso que os irmãos assumem para toda a vida. No mosteiro de Goiás, é costume que, depois de ler a carta da profissão beneditina, os irmãos se ajoelham diante do “poço” e, tocando na água, renovam o seu batismo, prometendo a Deus consagrar-se à oração e ao trabalho pela unidade das Igrejas e pelo diálogo entre as religiões.

Após fazerem a sua promessa pública, os irmãos recebem do prior do Mosteiro a consagração monástica. É o sinal de que Deus responde ao gesto que os seres humanos fazem de se comprometer com ele, consagrando-os. Através desta bênção, o próprio Deus toma posse daqueles que se dispõem a ser dele.

Esta consagração dos monges interessa ao Mosteiro de Goiás, mas também a vocês todos que buscam a unidade interior e a paz, porque a consagração monástica é feita para lembrar a todos que, como ser humano, você também é chamado/a a ser consagrado/a. Por isso, aos irmãos Fernando e José Maria eu direi o que, agora, escrevo a vocês e que são palavras de Irineu de Lyon, bispo do século II: “Já que és mesmo obra de Deus, espera a mão do teu artesão. Se deixares, ele fará em ti tudo o que convém. Oferece a ele um coração leve e dócil. Conserva a forma que te deu o teu artesão, mantendo algo de maleável para que, endurecendo, não percas os traços do seu dedo divino. Caminhas para a perfeição mantendo este modelo original que as mãos dele plasmaram em ti. A ele entregues o que é teu: a confiança e a tua obediência. Aí tu receberás o selo impresso de sua arte em ti. Serás, então, a obra perfeita de Deus” (Adversus Haereses IV, 39).

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